Denúncia foi feita à Sputnik Brasil por fontes próximas do caso, que afirmaram que desembargadora atendeu ao pedido do pai da menina, que conhecia o autor do crime e, com apoio de grupos antiaborto e religiosos, entrou com uma ação para impedir o procedimento.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi acionado nesta sexta-feira (12) contra uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), por impedir que uma menina de 13 anos, que engravidou após ser vítima de estupro, realizasse o aborto, garantido pela legislação brasileira para casos como esse.
A Sputnik Brasil recebeu a denúncia de fontes que atuam para garantir a proteção da menina, que relataram que ela deseja realizar o procedimento e se encontra fragilizada e vulnerável.
Segundo a denúncia, Clarice (nome fictício) mora com o pai e a madrasta, que, segundo fontes, é submissa ao marido. Em fevereiro deste ano, Clarice saiu escondida de casa, acompanhada de uma amiga, e foi ao Centro de Atenção Integral em Saúde (CAIS) da região de Campinas, em Goiânia, onde relatou estar grávida.
Após constatar a gravidez, a equipe que atendeu a menor encaminhou o caso ao Conselho Tutelar da Região de Campinas, que acionou o Juizado da Infância e Juventude de Goiânia. Na ocasião, Clarice estava na 18ª semana de gestação.
O caso corre em segredo de Justiça, por isso nenhum dos órgãos envolvidos, procurados pela reportagem, se posicionou sobre o tema.
Porém, segundo informações baseadas em fontes e documentos aos quais a Sputnik Brasil teve acesso, Clarice relatou que em janeiro teve por volta de quatro encontros com João (nome fictício), homem de 24 anos que apontou como pai do bebê.
O pai da menina foi consultado e afirmou que saía cedo, junto com a esposa, para trabalhar e que Clarice ficava sozinha em casa. O pai afirmou que Clarice teria começado a se relacionar com João sem o conhecimento dele, mas confirmou que já conhecia João de uma cidade do Maranhão.
A menina manifestou o desejo de realizar o aborto e foi informada por uma equipe médica sobre como era feito o procedimento, mas o pai se posicionou contra, o que inviabilizou a realização. Isso porque em casos de estupro envolvendo menores é necessária a autorização de um responsável para que o aborto seja realizado.
Segundo os documentos, o pai ligou para João e o convidou a ir à sua casa para conversar sobre o ocorrido. Posteriormente, ele afirmou que na conversa ficou estabelecido que João assumiria toda a responsabilidade pelo bebê. Ademais, o pai não quis fazer o boletim de ocorrência por contestar a existência de crime de estupro, afirmando que João e a menor “namoraram escondido”.
No entanto, a legislação brasileira determina qualquer relação sexual entre um maior de idade e menores de 14 anos como estupro de vulnerável, uma vez que se trata de crianças que não têm desenvolvimento biológico e cognitivo para manter uma relação, e também carecem de arcabouço social e psicológico para entender o abuso e suas consequências.
Por conta da recusa do pai, a menina acabou encaminhada a unidades de saúde para realizar exames pré-natais, mas não compareceu às consultas por não desejar manter a gravidez. Ela chegou a ameaçar tomar medidas por conta própria para interromper a gestação se não conseguisse o aborto por meios legais.
Com o passar do tempo, ela chegou à 20ª semana de gestação, o que tornou o caso mais complexo, já que a partir desse período é necessário realizar a interrupção por meio de assistolia fetal, um método mais invasivo, que traz altos riscos para a gestante.
Segundo relatou uma fonte, o caso foi para as mãos da juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso da Silva, da Vara da Infância e Juventude da comarca de Goiânia, que autorizou a interrupção da gravidez, mas não via assistolia fetal, e sim com a preservação da vida do feto, ou seja, uma cesariana prematura, que, segundo fontes, colocaria tanto a vida da menina quanto a do feto em risco.
Segundo as fontes, assessorado por grupos antiaborto e religiosos, o pai da menina entrou com uma ação contra o procedimento, e a desembargadora Doraci Lamar Rosa da Silva Andrade, do TJGO, proibiu a cesariana prematura e determinou a manutenção da gravidez. Além disso, o pai também pediu a guarda do bebê e contestou na ação a existência de estupro, afirmando que o “delito de estupro está pendente de apuração”.
Atualmente a menina está se aproximando da 30ª semana de gestação, sem que haja uma definição do caso.
Segundo uma fonte, esta não é a primeira vez que a juíza Maria do Socorro está envolvida no impedimento de realização de aborto em um caso referente a estupro de vulnerável.
Em 2022, ela concedeu uma sentença similar para o caso de uma menina de 11 anos que tinha engravidado após ser estuprada pelo padrasto. O caso foi noticiado pela mídia local. Na ocasião, a avó paterna entrou com uma ação contra a realização do aborto, alegando motivos religiosos, e foi atendida pela juíza. Segundo a fonte, na época, a decisão foi tomada mesmo diante de um relatório do Hospital Estadual da Mulher (Hemu), anexado ao processo, que informava sobre os riscos.
“Diante de uma gravidez, esta condição de imaturidade biológica da adolescência precoce traz como consequência uma maior taxa de complicações obstétricas, tais como anemia, pré-eclâmpsia e eclâmpsia, diabetes gestacional e parto prematuro”, dizia o relatório.
Nesta sexta-feira (12), entidades e organizações se reuniram em frente ao Juizado da Infância e Juventude de Goiânia em um ato intitulado “Criança não é mãe!”, em defesa das meninas vítimas de violência sexual e pela interrupção da gravidez de Clarice.
O comunicado enviado à imprensa sobre o ato alerta que, segundo dados do governo federal, 12,5 mil meninas de 8 a 14 anos de idade deram à luz no ano de 2023, o que significa que a cada 20 minutos uma criança é mãe no Brasil.
Também nesta sexta-feira, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) acionou o CNJ contra a desembargadora Doraci Lamar, por violência institucional.
À Sputnik Brasil, a advogada Tania Maria de Oliveira, jurista e membro da coordenação executiva nacional da ABJD, destacou que a legislação brasileira “permite, sim, o aborto em caso de estupro para todas as mulheres, não apenas no caso de menor”.
Porém ela explica que no caso de meninas é mais delicado porque muitas demoram mais, tanto para buscar ajuda quanto para descobrir a gestação, o que acaba atrasando o processo.
“De toda forma, isso não exime a Justiça e a lentidão para tomar a decisão a tempo de resguardar o direito e a vida dessa menor.”
Ela ressalta que apesar do direito garantido pela legislação de realizar o procedimento via Sistema Único de Saúde (SUS), “esse direito não tem sido exercido na sua plenitude e, sobretudo, ainda existem dúvidas por parte de autoridades sobre como deve ser feito”.
“Mas o fato é que é um direito, e isso deve ser garantido. Existe sempre a possibilidade de aprimoramento na legislação para que esses prazos sejam melhor obedecidos. É sempre possível melhorar a legislação, mas, sobretudo, é preciso uma briga muito grande da sociedade para que, quando isso for judicializado, e quase sempre é, ou muitas vezes é, o Judiciário não seja um empecilho para o exercício do direito da mulher estuprada e, menos ainda, de uma criança estuprada.”
Ela afirma que meninas que passam por essa situação e precisam de ajuda podem buscar a Defensoria Pública, em primeiro lugar, o Ministério Público e todos os órgãos do sistema de Justiça que são capazes de entrar com ação representando-as para o exercício do seu direito.
Sobre a denúncia de que grupos antiaborto liderados por religiosos estão atuando para pressionar os órgãos competentes a determinarem que a menina mantenha a gestação, Oliveira enfatiza que “o Estado é laico, e obviamente não podemos nem devemos permitir que grupos religiosos, seja de que religião forem, interfiram no exercício dos direitos dos cidadãos”.
“Essa discussão de que aborto é uma questão religiosa, de discutir o direito à vida, é um falso debate, porque não há que se misturar a religião com o Estado. O Estado do Brasil, por natureza e por determinação, é laico. A Justiça brasileira é alvo da interferência religiosa, assim como o Congresso, como as instituições são. Faz parte dessa tentativa deturpada de interferir nos ditames do Estado de Direito a partir de concepções que são particulares, no caso a religião de determinados grupos. Para impedir que isso aconteça é [necessária] disputa social mesmo, fazer com que as instituições cumpram seu papel sem ceder a pressões indevidas.”
Questionado sobre o que pode ocorrer com a desembargadora Doraci Lamar, caso a denúncia feita ao CNJ seja acatada e ela seja julgada e condenada por violência institucional, Vitor Albuquerque, advogado criminalista associado à ABJD, afirma que ela seria afastada do cargo e seria designado um novo relator.
“Sobre a violência institucional, haverá uma sindicância preliminar, um procedimento administrativo anterior para averiguar se há ou não uma falta, uma violação dos preceitos éticos e constitucionais e até do código da magistratura por parte da desembargadora. Caso haja indício disso, é instaurado um procedimento administrativo disciplinar. Se o procedimento for aceito pelo plenário do CNJ, ele é instaurado e ela [desembargadora] pode ser condenada ou não. Ela pode sofrer as sanções que estão nas resoluções do CNJ, de advertência até aposentadoria compulsória, a depender da gravidade do fato apurado.”
Questionado sobre por que a juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso da Silva, da Vara da Infância e Juventude da comarca de Goiânia, não foi incluída na ação, Albuquerque explica que a associação ainda não tem acesso à decisão da juíza.
“A ABJD não tem elemento suficiente para fazer uma representação contra ela, mas com certeza vamos fazer requerimentos para ter acesso não só a esse processo específico, mas a outros em que há suspeita de violação e descumprimento da legislação que versa sobre o aborto legal.”
Sobre a responsabilidade do pai de Clarice no caso, Albuquerque sublinha que será apurada e que, se comprovada, ele poderá sofrer punição.
“Têm que ser analisadas todas as provas, tudo que foi feito por ele, tudo que foi feito pelo Judiciário e por todas as partes envolvidas, caso se verifique que houve alguma omissão, algum abandono de incapaz, alguma coação, alguma violência sexual. Às vezes, pode-se constatar até mesmo exploração sexual. Então é necessário que se averiguem, que se levantem todos os elementos probatórios relacionados a esse caso, [para] […], depois desse levantamento, descobrir se ele cometeu algum ilícito ou não contra a própria filha.”
Porém o advogado afirma que, embora ainda não haja elementos suficientes, tudo aponta que a menina está sendo obrigada a manter a gestação como um castigo.
“Tudo aponta para que, no mínimo, o pai cometa uma violência psicológica contra a própria filha, querendo impor um castigo na garota por ela ter tido relações com uma pessoa maior de idade, […] que inclusive ele conhece […]. Então o que aparenta mesmo é isto: que a criança está sendo castigada por ter sido estuprada, e que o pai tem um grande envolvimento nesse castigo, que é um dos principais violentadores nessa história, que além de conhecer o jovem que a estuprava, ele ainda dá um aval para esse estupro, ele apoia essa gravidez.”
Questionado sobre se ainda há tempo para Clarice realizar o aborto, Albuquerque afirma que sim, mas que a cada dia o procedimento se torna mais arriscado.
“A ABJD tem a expectativa de que, com a mobilização nacional e a mobilização de pessoas importantes, de associações que defendem o direito ao aborto, seja possível que o Judiciário perceba o erro e a violência que está cometendo contra essa criança e que ajude essa criança a exercer o seu direito de aborto legal decorrente de uma gravidez fruto de um estupro.”
A Sputnik Brasil entrou em contato com o TJGO para pedir o posicionamento do órgão sobre o caso, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
O caso envolvendo Clarice ilustra uma série de outros similares, onde crianças são alvos de estupro.
Segundo o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2023, o Brasil registrou 74.930 estupros de vulneráveis em 2022, o maior número já contabilizado.
No recorte por raça/cor, 56,8% das vítimas são crianças negras, 42,3% brancas, 0,4% amarelas e 0,5% indígenas. As meninas somam 88,7% dos casos, e meninos 11,3%. Na maioria dos casos (82,7%), o crime é praticado por uma pessoa conhecida da vítima, sendo que na faixa etária até 13 anos de idade, em 64,4% dos casos o autor é um familiar e em 71,6% o crime ocorre na residência da vítima.